Os estranhos visitantes do Dops
Investigação da Comissão da Verdade revela que representantes da
Fiesp e do Consulado dos EUA eram presença frequente no centro de
torturas
15/02/2013
Patrícia Benvenuti
da Reportagem - http://www.brasildefato.com.br/node/11968
da Reportagem - http://www.brasildefato.com.br/node/11968
O que um representante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) faria em um centro de torturas da ditadura civil-militar (1964-1985) durante madrugadas? O que levaria um cônsul dos Estados Unidos a esse mesmo lugar repetidas vezes, por longas horas?
É
sobre essas questões se que se debruçam atualmente os membros da
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Por meio de
investigações, a Comissão apurou que pessoas ligadas à Fiesp e ao
Consulado eram presença constante durante os dias e as noites do
Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops),
um dos órgãos repressores criados pelo regime.
Para tentar
esclarecer esses fatos, a Comissão Estadual da Verdade realizará uma
audiência pública na próxima segunda-feira (18), às 14h, na Assembleia
Legislativa (Alesp), onde apresentará os documentos que embasaram as
investigações.
“Coincidência”? Cônsul estadunidense entra no Dops cinco minutos depois do capitão Ênio Pimentel Silveira, um dos torturadores mais famosos
do período - Foto: Documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo
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Visitas frequentes
A
chave para a descoberta foi uma pesquisa no “Coincidência”? Cônsul
estadunidense entra no Dops cinco minutos depois do capitão Ênio
Pimentel Silveira, um dos torturadores mais famosos do período - Foto:
Documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ao checar os
livros de registro de entrada e saída do prédio do Dops, localizado no
centro da capital paulista, integrantes da Comissão Estadual da Verdade
perceberam a frequência de dois nomes, que não faziam parte das
equipes policiais: “Dr. Geraldo Rezende de Matos”, que se apresentava
no formulário como “Fiesp”, e “Dr. Halliwell”, que assinava como
“Consulado Americano”.
Além da assiduidade, despertaram atenção
os horários em que os representantes da Fiesp e do consulado
estadunidense se dirigiam ao prédio do Dops e as longas horas em que
permaneciam ali.
Somente nos meses de abril a setembro de 1971
(os livros com os outros meses deste ano desapareceram), Geraldo
Rezende de Matos, da Fiesp, dirigiuse ao local 40 vezes. Em uma dessas
visitas, sua entrada ocorreu às 17h30min, mas não consta horário de
saída. Como os funcionários da portaria trabalhavam apenas até 22h, os
movimentos feitos depois deste horário não eram anotados. Significa,
então, que Matos teria ficado além das 22h.
Já em outro registro,
de 24 de abril de 1972, o representante da Fiesp entra no prédio às
18h20 e sai às 12h35 do dia seguinte, 25 de abril. Foram cerca de 18
horas no local.
“O que o cara da Fiesp ia fazer lá? Essa é a
pergunta que fazemos”, explica o coordenador da Comissão Estadual da
Verdade, Ivan Seixas.
Seixas, que também é ex-preso político e
membro da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos,
conta que a Comissão já pediu esclarecimentos à Fiesp sobre o assunto. A
federação, por sua vez, alega não ter registros de Geraldo Rezende de
Matos.
De acordo com investigações da Comissão, Matos era um
empresário ligado aos ramos de metalurgia, além de possuir uma empresa
de seguros e reparação que atendia militares.
“A Fiesp tem que explicar isso, não estamos inventando nada”, destaca o presidente da Comissão Estadual da Verdade, o deputado Adriano Diogo (PT-SP). “Queremos saber por que uma pessoa que ia ao Dops, [onde] permanecia horas e madrugadas, assinava como representante da Fiesp”, completa.
A
Fiesp foi convidada para prestar esclarecimentos sobre o caso na
audiência pública do dia 18. A reportagem entrou em contato com a
assessoria de imprensa da federação, que não soube informar se a
instituição estará representada.
Empresariado
Os
vínculos do empresariado com os agentes da ditadura são assunto antigo
de pesquisas e estudos. O tema é a base do documentário Cidadão
Boilesen (2009), dirigido por Chaim Litewski. O filme, que resgata a vida
do empresário dinamarquês Henning Boilesen, desvela não apenas as
contribuições financeiras do protagonista (então presidente do grupo
Ultra) ao aparato militar, mas de diversas figuras ligadas a organizações
multinacionais e instituições, incluindo a Fiesp.
Em novembro, o
coordenador da Comissão da Verdade, Cláudio Fonteles, divulgou um
texto em que relaciona a Fiesp à produção de armas para os militares que
derrubaram João Goulart da presidência em 1964. No documento,
Fonteles cita um relatório confi dencial produzido pelo Serviço
Nacional de Informações (SNI), hoje sob guarda do Arquivo Nacional, que
descreve a criação do Grupo Permanente de Mobilização Industrial
(GPMI) em 31 de março de 1964, data do golpe. De acordo com o
documento, o órgão teve a função de fornecer “armas e equipamentos
militares aos revolucionários paulistas”.
O caso de Geraldo
Rezende de Matos, no entanto, desperta na Comissão outra suspeita. Para
Seixas, é provável que as idas de Matos ao Dops visassem a troca de
informações entre empresários, a polícia e o Exército. “Vem à cabeça de
todo mundo, quando se fala em empresários e repressão, o financiamento.
Mas nós não estamos trabalhando com essa hipótese. Para nós, a Fiesp ia
lá entregar nomes de operários para serem reprimidos”, esclarece
Seixas.
Consulado
Já o “Dr. Halliwell”
dos livros de registros era Claris Rowley Halliwell (19182006), cônsul
estadunidense no Brasil entre 1971 e 1974. Junto à Universidade de
San Diego, na Califórnia, a Comissão apurou que Halliwell teria
integrado o serviço secreto dos Estados Unidos, a CIA.
Assim
como Geraldo Rezende de Matos, ele também comparecia com frequência
aoDops, sobretudo à noite, on-de permanecia durante toda a madrugada.
De abril a setembro de 1971, Halliwell esteve no local 31 vezes, de
acordo com os registros.
Em uma das idas, em 5 de abril de 1971,
seu ingresso no prédio ocorreu às 12h40min da tarde, cinco minutos
depois da entrada do capitão Ênio Pimentel Silveira, torturador que fi
cou conhecido como “Dr. Ney”. Ambos permaneceram no prédio além das
22h.
As “coincidências” não param por aí. Nesse mesmo dia, pela
manhã, havia si-do preso e levado para o Dops Devanir José de Carvalho,
dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Depois de uma
série de torturas, Carvalho faleceu em 7 de abril.
Para Ivan Seixas, não há como negar o envolvimento do cônsul com os crimes. “Nos prédios do Dops e da Oban [Operação Bandeirante], quando se torturava não era segredo. O prédio inteiro ouvia, a vizinhança também. O mínimo que se pode dizer era que o ‘cara’ [cônsul] era conivente, mas eu acho que [ele] era participante”, diz Seixas. Depois de sair do Brasil, Halliwell foi cônsul estadunidense no Chile – onde, um ano antes, um golpe de Estado havia tirado do poder Salvador Allende.
“A gente
acha que essas coisas são de filme de ficção científica, que ‘na minha
terra não tem isso’. O ‘cara’ não estava levando os passaportes para a
Disneylândia, era um agente da CIA”, ressalta o deputado Adriano
Diogo, que integrou a militância estudantil durante o regime.
Para
o deputado, a revelação desses registros ajudará a contar a história
des-se período e a revelar quem praticou e engendrou os crimes.“Os
documentos evidenciam a existência de uma enorme organização criminosa
que se reunia nas dependências do Dops para torturar as pessoas, matar e
planejar sequestros”, pontua.
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